Neste texto, tocaremos em um assunto específico e muito importante, que trata de procedimentos ligados a transexualidade e sua cobertura por parte dos planos de saúde. Há judicialização desse tema e, no âmbito jurídico, já existe entendimento sobre essa questão.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por exemplo, adotou uma posição relevante sobre a obrigação dos planos de saúde em relação ao custeio de cirurgias de transgenitalização e de plástica mamária com implantação de próteses para mulheres transexuais.
A decisão do STJ se respalda num entendimento mais amplo sobre a saúde e os direitos das pessoas trans. Antes de tudo, é fundamental ressaltar que esses procedimentos não são meramente estéticos ou experimentais. Eles são essenciais para a conformidade entre a identidade de gênero e o corpo físico das pessoas transexuais, contribuindo significativamente para a saúde mental e física dessas pessoas.
SUS, procedimentos de redesignação sexual e justiça
A cobertura de procedimentos de redesignação sexual por operadoras de planos de saúde conta com amparo legal, fundamentado na decisão da ministra Nancy Andrighi no REsp 2.097.812. A lei 9.656/1998, que regula os planos de saúde no Brasil, conjuntamente com a Lei 8.080/1990, conhecida como Lei Orgânica da Saúde, fornecem os argumentos para a análise do tema.
Primeiramente, a interpretação do artigo 19-Q, parágrafo 2º da Lei 8.080/1990 ressalta que procedimentos incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS) contam com respaldo em evidências científicas que atestam sua eficácia, efetividade e segurança. Assim, os procedimentos de redesignação sexual, ao serem incorporados ao SUS, assumem status de procedimentos reconhecidos e válidos dentro do amplo conceito de saúde integral.
Por sua vez, o artigo 10 da Lei 9.656/1998 estabelece as hipóteses de exclusão de cobertura pelos planos de saúde. Entretanto, não se enquadram nessas exclusões procedimentos prescritos pelo médico assistente e incorporados ao SUS, que são reconhecidos pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) para a mesma indicação clínica, e que se encontram listados no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) sem diretrizes de utilização específicas. Ou seja, os procedimentos de redesignação sexual preenchem os requisitos necessários à imposição da cobertura pela operadora do plano de saúde.
Procedimento estético X saúde integral
De acordo com o entendimento do STJ, uma vez reconhecidos pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e incorporados pelo SUS, os procedimentos de redesignação sexual e implantação de próteses mamárias transcendem a categoria de experimentais ou puramente estéticos. Eles são considerados parte do processo transexualizador, reconhecendo a condição de disforia de gênero (hoje denominada incongruência de gênero, segundo o CID 11 – HA60). Trata-se da necessidade de tratamento para alinhar o corpo ao gênero experienciado.
Além disso, a ministra Nancy Andrighi ressaltou que procedimentos como a cirurgia plástica para inclusão de prótese mamária, no contexto da redesignação sexual, superam o caráter estético e assumem um papel fundamental na afirmação de gênero e na saúde integral do indivíduo. Isso está alinhado à visão contemporânea de saúde que abrange o bem-estar físico, mental e social, conforme orientado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Aspecto físico, mental e social trans
No entendimento da saúde integral, o STJ considerou que também deve se levar em conta, para além do aspecto físico, o bem-estar psicológico e social da pessoa transexual. A jurisprudência fortalece o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à saúde, ambos fundamentais na Constituição Federal. Nesse sentido, a negativa de cobertura para tais procedimentos por parte dos planos de saúde constitui uma violação desses direitos.
Para a defesa de casos em que esse tipo de cobertura é negado, é essencial adotar uma estratégia que enfatize a evolução do entendimento médico e jurídico sobre a transexualidade. Do mesmo modo, reforçar a necessidade de tratamento e a inclusão desses procedimentos pelo SUS e pelo CFM como essenciais ao processo transexualizador. Além disso, deve-se argumentar que a negativa de cobertura causa danos morais significativos, reforçando o direito à reparação, como evidenciado pela condenação da operadora ao pagamento de indenização no caso julgado pelo STJ.
Esses argumentos revelam, enfim, que há uma compreensão contemporânea sobre a saúde trans. Assim, a exclusão da cobertura de procedimentos por parte dos planos de saúde é ilegal e deve ser judicializada por quem se sentir lesado.
A decisão do STJ fornece fundamento sólido para a argumentação em casos similares. Os procedimentos de transgenitalização e implantação de próteses mamárias para pessoas transexuais devem ser vistos como necessidade de tratamento e não como meros procedimentos estéticos ou experimentais. Portanto, há obrigação na cobertura pelos planos de saúde, sob risco de serem processados ao não cumprirem com a responsabilidade.